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Anestesia contemporânea e anestésicos


Anestesia e cirurgia

Os agentes usados para induzir a anestesia atuam modificando a função dos canais iônicos dependentes de voltagem nas membranas das células nervosas; o mecanismo exato ainda é discutível.

Os anestésicos também suprimem o tônus muscular e induzem ao relaxamento, ainda que hoje em dia relaxantes musculares adicionais também sejam frequentemente administrados. O uso de relaxantes musculares permite ao cirurgião um acesso mais fácil ao sítio cirúrgico. A prevenção do reflexo de estiramento muscular do paciente e a supressão da contração do tônus muscular facilitam a intubação e ventilação mecânica.

A via de administração de anestésicos pode ser 1) intravenosa ou 2) inalatória.

1) Agentes intravenosos: podem ser opióides ou não-opióides. Eles incluem o mais novo anestésico intravenoso, propofol (C12H18O, introduzido à prática clínica em 1989 e registrado com o nome de Diprivan). Esse anestésico de manutenção possui uma indução que é rapidamente metabolizada e, estruturalmente, assemelha-se ao neurotransmissor GABA e suprime a atividade em promotores de vigília do núcleo tuberomamilar; e o etomidato (C14H16N2O2; introduzido em 1972 como Amato), um agente de indução que causa o mínimo de depressão cardiovascular em virtude de sua falta de efeito sobre o sistema nervoso simpático; temos também os barbitúricos, tais como o tiopentato de sódio (Pentotal) e o metoexital (Brevital); as benzodiazepinas, tais como o diazepam (introduzido como o anestésico Valium em 1966), o midazolam (Versado) e o lorazepam (Ativan), ambos utilizados para sedação pré-anestésica e indução de anestesia; e a ketamina (C13H16CINO; Ketalar).

2) Anestésicos inalatórios: incluem o gás óxido nitroso (N2O) e líquidos voláteis potentes tais como o derivado halogenado de alcano (CF3CHClBr; introduzido em 1956 com o nome de Fluothane) e os derivados halogenados do éter, em especial o enflurano (CHClFCF2OCHF2; introduzido em 1972: Etrane), o fétido insoflurano (CF3CHClOCHF; introduzido em 1981: Forane); o ainda mais volátil e igualmente fétido desflurano (CF3CHFOCHF2; introduzido em 1992: Suprane); e o não irritativo, com gosto adocicado e altamente insolúvel, sevoflurano (C4H3F7O; introduzido em 1990: Ultane).

O gás inerte xenônio (Xe) está sob investigação ativa. Ele é um anestésico e analgésico seguro e efetivo, com propriedades hipnóticas e um rápido tempo de recuperação. O xenônio não é um depressor cardíaco, uma vantagem importante. Além disso, é extremamente insolúvel no plasma; daí o seu início de ação rápido. Contudo, o xenônio é muito caro.

Em alguns países, os anestesistas continuam a usar o chamado “Quaalude da Natureza”, o mal afamado ácido gama-hidroxibutírico (GHB; Xilema).

Na cirurgia contemporânea, normalmente, são combinados agentes indutores intravenosos de ação rápida e anestésicos inalatórios com propriedades complementares. Os anestesistas comumente buscam a chamada anestesia equilibrada, em vez de depender de um único agente. A prática moderna empenha-se em prol de “anestesia, analgesia, amnésia, arreflexia e estabilidade autonômica”. Nenhuma droga única conseguiu alcançar tudo isso de uma só vez. Ademais, a utilização de drogas diferentes para modular cada efeito desejado permite tanto ao anestesista quanto ao cirurgião uma maior medida de controle. A menos que o agente intravenoso de ação rápida seja administrado desde o princípio do procedimento, a indução da anestesia pode precipitar no paciente uma breve fase inicial de delírio e excitação, sobretudo no caso do óxido nitroso, ou, historicamente, do éter; essa fase é seguida pela sedação e um aumento da dose-dependente na profundidade anestésica. É comum a adição de um analgésico opióide. Os anestésicos inalados ativam os sistemas descendentes supra espinhais inibitórios da dor, porém, em pequena quantidade, as doses subanestésicas, por vezes, podem até mesmo aumentar a sensibilidade à dor. O opióide adicional age sobre os receptores opióides na medula espinhal com o intuito de assegurar que estímulos nocivos não cheguem ao cérebro, onde sua intensidade pode acordar ou despertar parcialmente o paciente levemente anestesiado.

Atualmente, uma grande cirurgia sem anestesia é algo impensável: ainda assim, depois de muitas décadas de pesquisas, os mecanismos moleculares exatos pelos quais os agentes anestésicos induzem o esquecimento controlado são tão obscuros quanto os que geram a mente consciente. Os anestésicos atuam sobre a formação reticular ativadora do cérebro, essencial ao estado de consciência; o hipocampo, fundamental à formação da memória; e especialmente sobre os núcleos de transmissão sensoriais talâmicos e das regiões do córtex inferior para as quais eles projetam. Os núcleos de transmissão sensoriais talâmicos normalmente controlam a informação sensorial ao coordenar e filtrar dinamicamente do resto do corpo os impulsos que indicam audição, tato e visão. Uma hipótese interessante, senão especulativa, acerca da anestesia geral supõe que a (an)estesia depende de um único gatilho tálamo-cortical – um bloqueio hiperpolarizante dos neurônios tálamo-corticais.

Não há nenhuma relação estrutura-atividade óbvia entre os diferentes agentes anestésicos. Os gases inertes, compostos orgânicos e inorgânicos simples, e compostos orgânicos mais complexos como os alcanos halogenados, podem induzir a um estado de inconsciência reversível. Os anestésicos gerais carecem de antagonistas específicos. Existe, ao longo de várias ordens de magnitude, uma correlação linear positiva (a Regra de Meyer-Overton) entre a potência de diversos agentes anestésicos gasosos e sua solubilidade lipídica. Contudo, essa correlação pode revelar uma pista falsa. As teorias anteriores sobre os anestésicos agirem por meio da expansão do volume das membranas neuronais ou do aumento da fluidez da membrana caíram em desgraça. A maioria dos anestésicos aumenta a atividade dos subtipos do ácido gama-aminobutírico inibitório do tipo A (GABA(A)) e receptores de glicina; a maior parte dos anestésicos também inibe a atividade dos receptores de glutamato excitatórios; e não se tem conhecimento de quaisquer anestésicos gerais que não sejam ou GABA-miméticos ou antagonistas NMDA.

Alguns filósofos anestesistas acreditam que a solução para os mistérios da consciência reside na compreensão do mecanismo da anestesia geral. Todos os gases anestésicos dissolvem-se nos bolsões hidrofóbicos das membranas neurais através das Forças de van der Waals, forças quantum mecânicas passageiras extremamente fracas, conhecidas como Forças de Dispersão de London – nomeadas devido ao físico alemão Fritz London, em vez de qualquer simples desvio localizado a partir da Uniformidade da Natureza na metrópole. As Forças de Dispersão de London surgem da fraca força atrativa dos elétrons sobre uma molécula para os núcleos de outra molécula. Elas são a manifestação de acoplamentos instantâneos de nuvens de elétrons entre dois ou mais átomos ou moléculas apolares. Os anestésicos rompem essa força intermolecular ao sabotar a dinâmica conformacional de proteínas normais que subjaz a vigília e o sonho senciente [dreaming sentience]. O efeito sobre a senciência dessa ruptura sutil é facilmente reversível, sendo mais ou menos controlável – e profundo. Ainda assim, até entendermos como algo semelhante à mente consciente unitária é gerado a partir de uma colônia gigante de neurônios, é difícil ter certeza de como ela poderia ser reversivelmente extinta da melhor maneira possível tendo em vista a medicina cirúrgica – ou um simples sono sólido.

Até mesmo a suposição de que a consciência é extinta em vez de interrompida sob anestesia é problemática; ela repousa em uma ontologia dualista da mente e matéria. Possivelmente, o que se perde durante a anestesia não é a consciência, mas a consciência unitária: uma perda da coerência quântica macroscópica nos microtúbulos do citoesqueleto e a consequente interrupção da sucessão ultrarrápida dos estados coerentes, os quais sustentam o mundo egocêntrico virtual do indivíduo e sua permanência ilusória. O efeito de tal decoerência induzida por drogas não é exclusiva para os estados de anestesia geral. Uma perda de “vinculação” das atividades cerebrais espacial e temporalmente distribuídas em objetos visuais unitários, assim como uma perda do eu unitário, também ocorre durante o sono. Felizmente, essa vinculação/decoerência normalmente é regenerada após um curto intervalo de tempo: ou nós começamos a sonhar outra vez, ou acordamos. Acerca dessa análise, quando toda a coerência quantum mecânica apreciável é perdida sob anestesia geral, ou pelo tempo de duração do sono sem sonhos, mente/cérebro descoesam [decohere] para meros agregados celulares quase-clássicos novamente, os quais não possuem mais consciência coletiva do que uma colônia de formigas ou o sistema nervoso entérico do aparelho digestivo. Esse status é tudo o que se poderia esperar intuitivamente de um amontoado de células quentes, úmidas e turbulentas. Não obstante, de modo ainda mais desconcertante, há mecanismos moleculares comuns de ação entre os diferentes agentes anestésicos utilizados em animais e (experimentalmente) em plantas. Presumivelmente, plantas e animais destituídos de sistema nervoso central carecem de uma consciência unitária, quer estejam sob o efeito de drogas, anestésicos ou outra coisa.

Essas reflexões filosóficas podem parecer acadêmicas para um paciente submetido à cirurgia. Todavia, sua relevância clínica não pode ser completamente desconsiderada. A anestesia “geral” é, por vezes, incompleta; variando tanto em profundidade quanto em tempo de duração. Dezenas de milhares de casos de despertar intraoperatório ocorrem em salas de cirurgia todos os anos, apesar do uso de uma bateria de equipamentos de monitoramento sofisticados pelo anestesista. Reações de emergência e experiências extracorpóreas são especialmente comuns com o anestésico dissociativo ketamina, um primo do PCP (“pó de anjo”), atualmente utilizado por veterinários e psiconautas, ao invés de anestesistas.

Os agentes usados como anestésicos gerais também podem induzir amnésia, principalmente em decorrência de seus efeitos sobre o hipocampo. Historicamente, presume-se que a amnésia causada pela poderosa mistura anticolinérgica de ervas Tsusensan criada pelo cirurgião japonês Sheishu Hanaoka (1760 – 1835), um anestésico geral administrado oralmente, era profunda. Porém, às vezes, a amnésia pós-operatória é apenas parcial. Essa é uma das razões pelas quais, muitas vezes, são dados amnésicos benzodiazepínicos aos pacientes como medicação pré-anestésica [premed]. Há uma volumosa literatura acerca das experiências místicas induzidas por anestesia. John Millington Synge (1871 – 1909), o poeta e dramaturgo irlandês [Cavaleiros Para o Mar, entre outros], escreveu sobre suas experiências sob anestesia com éter: “Eu parecia atravessar épocas inteiras de desolação e alegria. Todos os segredos foram revelados diante de mim...” [Interstate Medical Journal 23:45-49, 1916].

Em uma esteira similar, o filósofo, escritor e naturalista Henry David Thoreau (1817 – 1862), passou por uma experiência transcendental com éter enquanto vários de seus dentes eram extraídos: “Se você tem uma inclinação para viajar, tome éter – você irá além da estrela mais distante...”. Contudo, a probabilidade de viagens interestelares atualmente é bastante remota: os pacientes que estão se preparando para uma cirurgia não têm motivos para ficar alarmados. A consciência unitária da maioria dos indivíduos submetidos à anestesia simplesmente esvanece.

Original Title: Contemporary anaesthesia and anaesthetics
Author: David Pearce (2008)
Technical Review by: Lauren de Lacerda Nunes (2012)
Translation by: Gabriel Garmendia da Trindade (2012) see too 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10





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